Estava escrevendo, sentiu a orelha pesada. Pensou que fosse
cansaço, eram 11 da noite, estava fazendo hora-extra. Escriturário de uma firma
de tecidos, solteiro, 35 anos, ganhava pouco, reforçava com extras. Mas o peso
foi aumentando e ele percebeu que as orelhas cresciam. Apavorado, passou a mão.
Deviam ter uns dez centímetros. Eram moles, como de cachorro. Correu ao
banheiro. As orelhas estavam na altura do ombro e continuavam crescendo. Ficou
só olhando. Elas cresciam, chegavam a cintura. Finas, compridas, como fitas de
carne, enrugadas. Procurou uma tesoura, ia cortar a orelha, não importava que
doesse. Mas não encontrou, as gavetas das moças estavam fechadas. O armário de
material também. O melhor era correr para a pensão, se fechar, antes que não
pudesse mais andar na rua. Se tivesse um amigo, ou namorada, iria mostrar o que
estava acontecendo. Mas o escriturário não conhecia ninguém a não ser os
colegas de escritório. Colegas, não amigos. Ele abriu a camisa, enfiou as
orelhas para dentro. Enrolou uma toalha na cabeça, como se estivesse machucado.
Quando chegou na pensão, a orelha saia pela perna da calça.
O escriturário tirou a roupa. Deitou-se, louco para dormir e esquecer. E se
fosse ao médico? Um otorrinolaringologista. A esta hora da noite? Olhava o
forro branco. Incapaz de pensar, dormiu de desespero.
Ao acordar, viu aos pés da cama o monte de uns trinta
centímetros de altura. A orelha crescera e se enrolara como cobra. Tentou se
levantar. Difícil. Precisava segurar as orelhas enroladas. Pesavam. Ficou na
cama. E sentia a orelha crescendo, com uma cosquinha. O sangue correndo para
lá, os nervos, músculos, a pele se formando, rápido. Às quatro da tarde, toda a
cama tinha sido tomada pela orelha. O escriturário sentia fome, sede. Às dez da
noite, sua barriga roncava. A orelha tinha caído para fora da cama. Dormiu.
Acordou no meio da noite com o barulhinho da orelha
crescendo. Dormiu de novo e quando acordou na manhã seguinte, o quarto se
enchera com a orelha. Ela estava em cima do guarda-roupa, embaixo da cama, na
pia. E forçava a porta. Ao meio-dia, a orelha derrubou a porta, saiu pelo
corredor. Duas horas mais tarde, encheu o corredor. Inundou a casa. Os hospedes
fugiram para a rua. Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros. A orelha saiu
para o quintal. Para a rua.
Vieram os açougueiros com facas, machados, serrotes. Os
açougueiros trabalharam o dia inteiro cortando e amontoando. O prefeito mandou
dar a carne aos pobres. Vieram os favelados, as organizações de assistência
social, irmandades religiosas, donos de restaurantes, vendedores de
churrasquinho na porta do estádio, donas-de-casa. Vinham com cestas, carrinhos,
carroças, camionetas. Toda a população apanhou carne de orelha. Apareceu um
administrador, trouxe sacos de plástico, higiênicos, organizou filas, fez uma
distribuição racional.
E quando todos tinham levado carne para aquele dia e para os
outros, começaram a estocar. Encheram silos, frigoríficos, geladeiras. Quando
não havia mais onde estocar a carne de orelha, chamaram outras cidades. Vieram
novos açougueiros. E a orelha crescia, era cortada e crescia, e os açougueiros
trabalhavam. E vinham outros açougueiros. E os outros se cansavam. E a cidade
não suportava mais carne de orelha. O povo pediu uma providência ao prefeito. E
o prefeito ao governador. E o governador ao presidente.
E quando não havia solução, um menino, diante da rua cheia
de carne de orelha, disse a um policial: "Por que o senhor não mata o dono
da orelha?"
Nenhum comentário:
Postar um comentário